“Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19:2)

 Desde as páginas das Escrituras até nossos dias encontramos o imperativo divino: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19:2). Esse imperativo, apesar de ser um mandamento, reveste-se de um significado todo especial para a nossa existência. É um convite à verdadeira felicidade, e, por isto mesmo, ninguém resiste: “Tu me seduzistes, Senhor, e eu me deixei seduzir; agarraste-me e me dominaste” (Jr 20:7).

A ordem divina é dada de tal maneira que a pessoa não tem alternativa. É o que garante o próprio Deus: “Invoco hoje por testemunhas contra vós os céus e a terra, de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe a vida para que vivas com tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo-lhe à voz e apegando-te a ele. Pois isto significa vida para ti e tua permanência estável sobre a terra que o Senhor jurou dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó” (Dt 30:19-20). É, portanto, a grande vocação à santidade. É o Pai nos escolhendo em Cristo, já antes da criação do mundo, “para sermos em amor santos e imaculados”, ou seja, “predestinando-nos à adoção de filhos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito de sua vontade” (Ef 1:4-5).

Tal desejo do Pai ecoa na pregação de Jesus. Ao apresentar aos discípulos a nova proposta de vida que viera trazer, Jesus com a mesma força e o mesmo entusiasmo repete o imperativo divino que Moisés, séculos antes, havia comunicado à comunidade de Israel: “Sede perfeitos, portanto, como o Pai celeste é perfeito” (Mt 5:48).

Nesta perspectiva, os primeiros cristãos continuam a repetir o convite à santidade. Paulo, por exemplo, escrevendo aos cristãos de Roma, lembra-lhes que eles são “chamados a ser santos” (Rm 1:7). Às mulheres de Corinto recorda-lhes que são convocadas pelo Senhor para serem santas “em corpo e em espírito” (1 Co 7:34), isto é, na totalidade da própria existência. Aos efésios pede que não esqueçam que são “concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2:19). O autor da Carta aos Hebreus afirma que eles são santos, isto é, participantes da vocação que os destina à herança do céu (Hb 3:1). Na Primeira Carta de Pedro, o imperativo se faz muito mais categórico: “… a exemplo da santidade daquele que vos chamou, sede também santos em todas as ações, pois está escrito: Sede santos porque eu sou santo” (1Pd 1:15-16). O mesmo autor, mais adiante, dirá que toda a comunidade cristã participa de um “sacerdócio santo”, forma uma “nação santa” (1 Pd 2:5,9).

Esse apelo à santidade perpassa toda a história do cristianismo e chega até nossos dias. O verdadeiro significado da santidade: Ser santo é ser capaz de unir liberdade e responsabilidade para atuar diretamente nos destinos da história, promovendo a influência na transformação do mundo e no convívio social. Santidade, portanto, é acolher os mandamentos de Deus, as novidades do Espírito, em total obediência a Deus.

Somente Deus é Santo. De fato, “ninguém é santo como o Senhor” (1 Sm 2:2). Isso quer dizer, em primeiro lugar, que Deus é completamente diferente do ser humano: “… porque eu sou Deus e não homem, sou o Santo no meio de ti; …” (Os 11:9). Deus tem caminhos, desígnios e projetos para a plena salvação, e a verdadeira libertação. Deus realiza gratuitamente a redenção da humanidade.  Não tendo prazer na “morte de ninguém que morre” (Ez 18:32), Ele deseja apenas que o pecador “mude de conduta e viva” (Ez 18:23). Deus é diferente porque Ele é graça e perdão.“Oh! vós todos que tendes sede, vinde às águas! Mesmo que não tenhais dinheiro, vinde! Comprai cereais e comei! Mesmo sem dinheiro ou pagamento, vinde tomar vinho e leite!” (Is 55:1). O próprio Deus nos alerta: “Pois meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos. Porque assim como o céu é mais alto do que a terra, os meus caminhos estão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos” (Is 55:8-9). Ele nos convida a não nos confundir com Ele. Mas, a nos assemelharmos ao Seu jeito de ser e de agir.

A santidade, portanto, é, em primeiro lugar: A vivência de um estilo de vida que se afasta da proposta diabólica de querer ser igual a Deus. Esse querer ser igual a Deus é, no fundo, a auto-suficiência, a arrogância, ou seja, a pretensão de guiar-se por si mesmo, sem nenhuma referência ao mandamento divino. Deus muda a situação de cada ser humano, e da humanidade inteira do universo. Exatamente porque está acima de todos e de tudo, porque é Santo, que se inclina para ver a humanidade e caminhar com ela: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor por causa dos seus opressores; pois eu conheço suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios…” (Ex 3:7-8).

Encontramo-nos assim diante de um grande paradoxo. Deus é ao mesmo tempo distante e próximo, tremendo e fascinante, espanta e atrai a pessoa humana: “A quem me haveis de comparar? A quem me assemelharei? Pergunta o Santo” (Is 40:25). Encontra-se próximo, fascina e atrai porque escuta o pobre e atende a sua súplica: “Não temas, vermezinho de Jacó, e tu, bichinho de Israel. Eu mesmo te ajudarei; o teu redentor é o Santo de Israel” (Is 41:14).

Deus veio ao encontro de toda a humanidade, a Bíblia nos ajuda a perceber que Ele, por ser Santo, deseja que participemos de sua vida, de seu próprio Ser divino. Por isso, Ele quer ser chamado de “O Santo de Israel” (Is 1:4). Ele, que é totalmente distinto do ser humano, quer que esse último viva no tempo e no espaço como Ele vive na eternidade. Trata-se, portanto, da dimensão ética que brota da fé no Deus Santo.

A comunidade cristã primitiva recebe de Jesus o atributo da santidade, antes, exclusividade de Deus. Ele é o “santo servo Jesus” (At 4:30). Até os próprios demônios reconhecem isso: “Sei quem tu és: o Santo de Deus” (Mc 1:24). Também os apóstolos fazem essa mesma confissão de fé: “… nós cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6:69). Ele é “o Santo, O Verdadeiro” (Ap 3:7). O que antes era reservado somente a Deus, passa a ser atribuído a Jesus, reconhecido pela comunidade como sendo “o Filho de Deus” (Mc 16:39) ou “o Filho do Deus vivo” (Mt 16:16). A santidade de Jesus está intimamente relacionada com sua condição de filho: O Verbo Eterno de Deus que “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1:14). Assim, sua glória é “Ele como Unigênito do Pai ” (Jo 1:14). Para Jesus, Deus é o “Pai santo” (Jo 17:11) que sempre ouve o Filho, e guarda os servos que não são mais do mundo, para que sejam um, assim como Jesus é com o Pai (Jo 17:12-17). O Novo Testamento, Jesus é Santo exatamente porque, de maneira própria, única e exclusiva, é o Filho do Pai Eterno: “… Por isto “o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (Lc 1:35). Sendo o Filho, Jesus é aquele que é enviado para plenificar e realizar o desejo divino de vir ao encontro, e comunicar-se com a humanidade. Jesus o faz oferecendo sua própria vida, doando-a em sacrifício de salvação para reconciliação da humanidade com o Pai (2 Co 17-21). Podemos então dizer que a santidade de Jesus “manifesta-se na santidade de sua redenção: Ele santifica a si mesmo (acolhe em Si a santidade do Pai) para que todos os cristãos, por meio dele, se tornem participantes da santidade e da glória de Deus”.

A santidade como prerrogativa do Trino Deus é atribuída de modo particular também às pessoas da comunidade cristã: Igreja. Tal santidade da Igreja tem dois aspectos básicos:

1) Refere-se antes de tudo à união desta e de seus membros ao Pai, pela ação de Jesus Cristo, na força dinamizadora do Espírito Santo.

2) Diz respeito também à qualidade moral, isto é, ao comportamento, e atitudes da Igreja. Somos santos porque somos propriedade do Senhor Deus: “Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade…” (1 Pd 2:9).

Essa consciência que os cristãos tinham de pertencer a Deus tem suas raízes no Antigo Testamento: “Agora, se ouvirdes minha voz e guardardes minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha” (Êx 19:5). Ser propriedade de Deus é ser escolhido, privilegiado e amado. Somos fruto de livre escolha do Pai, o qual em sua bondade quis que existíssemos. Somos um presente da Trindade à Trindade! Explicando: Cada Pessoa divina quis presentear à outra com o melhor presente. Assim, decidem criar a pessoa humana, imagem e semelhança do Pai do Filho do Espírito Santo, por aquele infinito amor que cada Pessoa da Trindade tem uma à outra. O Novo Testamento reforça ainda mais tal relação, a partir da figura do grande consagrado do Pai que é Jesus. Lucas, por exemplo, fez questão de afirmar que Jesus é “o Santo” (Lc 1:35), e por isso a Ele se aplica ao que a velha aliança dizia do primogênito: “Todo macho que abre o útero será consagrado ao Senhor” (Lc 2:23). Nesta perspectiva, cristãos são pessoas consagradas ao Senhor (cf. 1 Pd 2:9-10).

A consagração é, segundo a Bíblia, uma investidura para o serviço. Ela é uma separação para a realização de um ministério, de um propósito, ou de uma função em benefício da comunidade cristã. Deus separa para si algumas pessoas, a fim de enviá-las em missão. O ato de separar é sempre acompanhado da investidura. As pessoas que foram separadas recebem de quem as separa e envia, os poderes para a realização plena da missão a elas confiada. A investidura acontece mediante gestos simbólicos, carregados de significado. Entre eles destacamos: a unção com óleo (1 Sm 16:12), a imposição das mãos (At 6:6) e o soprar sobre as pessoas (Jo 20:22). Do ponto de vista vocacional, a consagração, como descrita acima, é uma prerrogativa de todo o povo de Deus. Nele, todos “são consagrados como casa espiritual e sacerdócio santo, para que por todas as obras do cristão ofereçam sacrifícios espirituais e anunciem os poderes d’Aquele que das trevas os chamou à sua admirável luz” (Lc. 10).

Podemos assim concluir que a vocação à santidade é um chamado para viver em plenitude a vida cristã; um chamado a ser pessoa humana verdadeira, sem medo e sem reservas. A santidade da parte da pessoa chamada é a disponibilidade para realizar a vontade de Deus. Por exemplo: Isaías e Maria. O profeta, diante do apelo de Javé pedindo alguém para ser enviado, responde: “Eis-me aqui, envia-me a mim” (Is 6:8). A Virgem Maria, após receber o mensageiro divino comunicando-lhe o desejo do Pai, responde com prontidão: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1:38). Tendo presente essas premissas, podemos afirmar que a vocação à santidade é o chamado para a Obra. Deus nos escolhe, nos elege, nos chama para proclamar as suas “excelências” e “maravilhas” (cf.1 Pd 2:9).

A comunidade cristã primitiva entendeu bem essa verdade. Por isso os apóstolos, desde o início, mesmo enfrentando perseguições e calúnias, “não cessavam de ensinar e de anunciar a Boa Nova do Cristo Jesus” (At 5:42). Eles, que eram “os santos” (At 26:10), tinham a consciência de terem sido escolhidos para proclamar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16:15). Assim, “iam de lugar em lugar, anunciando a palavra da Boa Nova” (At 8:4). Paulo, que se considerava “o menor de todos os santos”, percebe que sua santidade se concretiza no seu chamado para evangelizar: Concedendo-lhe a “graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo” (Ef 3:8). A vocação para ser santo é, segundo ele, convocação para o anúncio da Boa Notícia. Como a busca da santidade é um imperativo aos cristãos, “chamados a ser santos” (1 Co 1:2). “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes, uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!” (1 Co 9:16).

A santidade é antes de tudo, ser escolhido por Deus para a nobre missão de comunicar à humanidade o projeto salvífico que envolve as três Pessoas Divinas. Esse chamado à santidade, ou convocação para a Obra, é, no dizer do autor da Primeira Carta de Pedro, um chamamento para oferecer “sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” (1 Pd 2:5). Por meio dEle, os cristãos devem caminhar na terra como cidadãos do céu, com o coração enraizado em Deus, por meio da oração. Tendo presente esse aspecto, podemos afirmar que a vocação à santidade é chamado divino para transformar o mundo. A atitude de oferecer “sacrifícios espirituais” lembra o ensinamento de Paulo, o qual pede aos romanos que ofereçam seus corpos “como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12:1). Portanto, a resposta à vocação acontece no dia-a-dia da vida das pessoas, no âmbito do desenrolar dos relacionamentos. É preciso, pois, que a santidade seja vivida na busca de comunhão entre as pessoas. Responder ao chamado divino à santidade é participar da construção do Reino de Deus, num mundo cheio de injustiça e de egoísmo. O cristão santificado não é aquele que se afasta do próximo, ao contrário, ele vai em busca dos que ainda não conhecem ao Senhor Jesus Cristo. O santo vai como pacificador ao encontro dos excluídos, para solidarizar-se e para relacionar-se. O próprio Jesus pede ao Pai que não tire os discípulos do mundo, mas que os guarde do Maligno (Jo 17:15). O não se conformar com a mentalidade do mundo, de que fala Paulo (Rm 12:2), não é fugir das pessoas, mas sim afastar-se da cobiça, da ganância, do amor ao dinheiro, que é “a raiz de todos os males” (1 Tm 6:10).

Seguindo esse dinamismo, é possível dizer que a vocação à santidade é o chamado para construirmos novas relações, baseadas na verdade, na justiça, no respeito mútuo, e no amor. É oferecer “sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus” (1 Pd 2:5). De fato, “se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” (2 Co 5:17). O ser “nova criatura” (Gl 6:15) é criação da Trindade: É o Pai, pelo Filho, na força transformadora do Espírito, que faz “novas todas as coisas” (Ap 21:5). Todavia, é sempre a pessoa humana que deve acolher essa ação trinitária e deixar-se transformar (Lc 13:1-5). As pessoas buscam hoje o testemunho, ainda que silencioso, dos cristãos. Querem o Evangelho na prática, e não apenas proclamado solenemente nos púlpitos dos templos cristãos.

A santidade leva necessariamente, o ser humano a ter um comportamento ético e moral, de acordo com sua condição de pessoa que foi consagrada pela unção do Espírito Santo. Não se concebe cristãos santos cujas atitudes negam ser propriedade do Senhor da Vida. Seria uma contradição! O testemunho de santidade, do cristão que faz a vontade do Pai, é indispensável. Somente uma pessoa que se move no ritmo de Deus pode suscitar nas outras o desejo de responder ao chamado divino. O vocacionado, que vive na plenitude da vida cristã, não precisa de muitas palavras para despertar nos outros a consciência e a vontade de seguir a Jesus Cristo porque a sua própria vida já será um apelo à salvação em Cristo.

Por Valdely Cardoso Brito


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